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REFUNDAR O MOVIMENTO ESTUDANTIL SOB UMA NOVA CULTURAPOLÍTICA

Por Emanuelle Kisse, Diretora de Direitos Humanos da UNE e militante do movimento Kizomba.

Em 1999, enquanto Kizomba, proclamamos a necessidade de atualizar a cultura política do Movimento Estudantil a partir da crítica à burocratização das entidades estudantis. Ao perder o horizonte revolucionário, os objetivos no movimento se confundiam: não mais se pautava a política a partir dos ideais de transformação social, mas do número de crachás e espaços de representações em entidades, em síntese, da disputa pela disputa. A artificialidade produzida pelo deslocamento das entidades estudantis da realidade dos e das estudantes criou uma falta de compreensão das diversas opressões que organizavam a vida estudantil, como também afastou os e as estudantes, que não se organizavam nas forças políticas, da construção do movimento estudantil.

É fato que muitos desses elementos permanecem atuais e que ainda hoje precisamos combatê-los no interior da dinâmica das entidades e das organizações políticas do Movimento Estudantil, contudo o que significa pautar uma nova cultura política à luz dos desafios organizativos do ME em 2024? É sobretudo em relação a esse questionamento que vamos buscar refletir ao longo deste texto.

DILEMAS E DESAFIOS DO MOVIMENTO ESTUDANTIL PÓS PANDEMIA E A PARTIR ELEIÇÃO DO GOVERNO LULA

A partir da pandemia, a Universidade deixou de ser esse espaço de encontro para formulação e construção política para os e as estudantes. Em uma conjuntura marcada pelos retrocessos sociais e políticos impostos pelo governo neoliberal e autoritário de Bolsonaro, o conjunto das organizações políticas e movimentos sociais precisaram reaprender a conduzir a dinâmica das lutas populares, através da intermediação das mídias sociais e construção de redes de solidariedade como enfoque.

Com a retomada presencial das aulas, novos desafios se apresentaram: as Universidades já não eram mais as mesmas, e o corpo acadêmico também não. A ampliação do ensino à distância, a precarização das condições de vida dos e das estudantes e os recursos escassos destinados à educação pública consolidaram para mais o desafio de reorganização estratégica para o crescimento, fortalecimento e enraizamento do Movimento Estudantil e a urgência de consolidação de uma agenda de lutas de unidade das forças políticas e sociais da esquerda brasileira.

Assim como aconteceu em períodos históricos de profundo refluxo ou até mesmo de erupções sociais – como no pós ditadura militar e no ápice da implantação neoliberal da década de 90 -, o debate sobre o papel social do movimento estudantil retoma com força máxima, fundamentalmente quando tratamos das estratégias para organização, de forma coordenada, da luta estudantil.

Naquele momento, a conjuntura impunha às trincheiras da luta social o papel de derrotar Bolsonaro e o Bolsonarismo como fator principal da agenda política dos movimentos sociais, logo do movimento estudantil. Alcançamos esse objetivo em partes ao eleger Lula à Presidência da República, com destaque para o papel desempenhado pelos estudantes. Contudo, a vitória eleitoral não significa uma imediata alteração da correlação de forças, a extrema-direita neoliberal seguiu sendo uma força social importante na conjuntura internacional e nacional, com capacidade de mobilização social e de articulação de suas agendas políticas no Congresso. Portanto, promover a sua derrota integral, à nível social e ideológico, continua sendo um dos nossos principais desafios.

Esse desafio está conectado com a capacidade das organizações e movimentos na mobilização do conjunto dos estudantes e da juventude brasileira, colocando na centralidade novamente uma profunda reflexão sobre o papel social da luta estudantil para esse período de governo Lula. E aquelas dificuldades que já sentíamos no decorrer e no pós-pandemia parecem permanecer, sobretudo na integração de novos militantes ao movimento estudantil, e na capacidade de mobilização para as lutas populares.

Assim, a partir desse cenário, compreendemos a necessidade de reorganização das bases estudantis nos CA’s, DA’s, DCE’s e UEE’s para retomada de sua capacidade de mobilização e coordenação da luta estudantil tão necessária para que possamos formar um bloco capaz de derrotar as forças fascistas e neoliberais. Contudo, para esse objetivo, é preciso ir além, é momento de profundas transformações nas práticas políticas e de retomada de nosso princípio organizativo, de nosso horizonte revolucionário na construção do socialismo democrático, é momento de refundar o Movimento Estudantil.

REFUNDAR O MOVIMENTO ESTUDANTIL: 25 ANOS DE KIZOMBA

Reorganização, reconstrução, reestruturação. Essas palavras têm sido
constantemente posicionadas no vocabulário dos movimentos sociais e populares nesse período político de retomada democrática no Brasil. É o tornar à construir, é do velho fazer algo novo, é refazer tudo, é olhar e refletir atento à realidade para incidir sobre ela, é movimento. A conjuntura nos impõe esse refazer, essa alteração profunda também no movimento estudantil.

Nesses 25 anos de Kizomba nos compreendemos a partir de uma tradição política viva, sempre dispostas a reflexão crítica e a atualização programática. Pautamos em uma nova cultura política para abarcar à história não contada das lutas sociais e populares travadas por aqueles e aquelas que vieram antes de nós em nosso território, mas também para reencantar o movimento estudantil brasileira, para que este conquiste mentes e corações por meio da incorporação de novas práticas, valores, saberes e fazeres políticos

Para a Kizomba essas novas práticas dizem respeito a capacidade de atualizar formulações a partir da realidade concentra, a horizontalidade das relações na dinâmica política, a desburocratização do movimento estudantil, o diálogo e construção ativa junto às bases estudantis, e também à coletivização de nossas decisões. É necessário que retomemos esses princípios a tal ponto que conflua para a importante radicalização democrática no interior de nossas entidades, organização e assim reverbere por toda sociedade brasileira. Para que assim se fortaleça os valores democráticos e de autonomia rumo à construção do socialismo, através da ideia bem radical de que povo pode governar a si mesmo, gerindo suas vidas, territórios e bens comuns.

A semente me ensinou a não caber e a não terminar em mim. Que possamos levantar nosso programa, retomar nossa identidade socialista e ousar um sonhar coletivo com um outro mundo possível.

Setembro Amarelo: Reflexões sobre saúde mental para o movimento estudantil

Por Pedro Henrique Silva, Estudante de Psicologia da UERJ, e João Pedro Santos da Silva, Psicólogo, Mestre e Doutorando em Saúde Coletiva – UERJ Conselheiro Nacional de Saúde – CNS/ANPG

Setembro é o mês de conscientização e  prevenção ao suicídio através da campanha Setembro Amarelo, cujo lema esse ano é “Se precisar, peça ajuda!”. Segundo informação da Organização Mundial da Saúde (OMS), disponível no portal Setembroamarelo.com, o suicídio é considerado um caso de saúde pública,“ mais pessoas morrem como resultado de suicídio do que HIV, malária ou câncer de mama – ou guerras e homicídios”. Torna-se, então, de extrema importância discutirmos sobre tal temática.

É comum que, ao falarmos sobre prevenção de suicídio, listemos algumas frases que são mitos, por exemplo, “Quem quer se matar não avisa, só se mata”, ou então, falemos sobre um conjunto de diretrizes cuja função é perceber caso alguém próximo possa estar prestes a tirar a própria vida. De fato, tais estratégias são interessantes por vários motivos.

É sem dúvida necessário nos desfazermos de algumas pré-concepções acerca do suicida, assim como também é importante nos atermos a alguns sinais que podem nos dar a oportunidade de convidar alguém a buscar um serviço de saúde para que haja acolhimento e a consideração de outras possibilidades para além da medida de pôr fim à própria vida.

No entanto, gostaríamos  de fazer um caminho um pouco diferente nesse texto. Ao invés de traçar respostas e diretrizes, gostaríamos de nos ater a perguntas. Talvez você esteja se perguntando qual a utilidade de ler um texto que, em vez de  dar respostas e informações técnicas, te traga mais perguntas. Isso não seria um tanto contraditório?

O objetivo aqui é nos desfazermos do lugar de suposto saber e nos implicarmos nessa discussão para que possamos pensar juntos, sobretudo de forma crítica. O que de fato é prevenir o suicídio e como estamos fazendo isso? O que será que podemos estar deixando escapar quando falamos sobre prevenção do suicídio, apenas, numa lógica individualizante onde o foco é o potencial suícida? Como estamos realizando esse enfrentamento nos cenários estudantis?

Se discutirmos esse tema usando como base o ambiente universitário veremos que há um número crescente de estudantes com ideações suicidas, Vale nos atentarmos também ao número expressivo dos índices de evasão dos estudantes. Segundo o Centro de Valorização da vida (CVV) no artigo Suicídio entre universitários, o número de casos de suicidio entre estudantes universitários tem crescido a cada ano desde 2002 e o Brasil atualmente se configura em primeiro lugar na América Latina.

Dessa forma, é importante discutirmos sobre este dado alarmante. Porém, será que, em meio a toda essa campanha e números, temos parado para pensar o quanto algumas lógicas presentes no ambiente universitário podem ser um desencadeador de constante sofrimento? Quando será que se tornou humanamente aceitável que muitos estudantes precisem fazer uso de substâncias químicas, para manter-se acordados e substituir o sono por estudos, a fim de dar conta da pressão de seus cursos?

E o que falar de uma lógica de produtividade, que associa excelência com quantidade de trabalhos produzidos e não qualidade, gera competitividade, e nos coloca numa exaustiva e contínua produção acadêmica a fim de termos mais oportunidades seja na própria universidade ou no mercado de trabalho? Educação, conhecimento e ciência se trata então de mais um espaço de exploração e produtivismo?

Ademais, refletindo acerca deste modelo, será que todos os estudantes, incluindo pobres e trabalhadores, conseguem o realizar com facilidade ainda mais quando bolsas de assistência estudantil não são nem sequer lei em muitos Estados brasileiros? Cabe ainda ressaltar o acúmulo da Kizomba, enquanto movimento estudantil, para a aprovação do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) através do projeto de lei 1.434/1 para que seja possível democratização do acesso e permanência, desde o ensino médio até o ensino superior, tornando o PNAES lei.

Ainda sobre o ambiente estudantil, é possível verificar nos principais artigos sobre o tema que o bullying segue sendo um dos principais motivos para o suicídio ao se tratar de  escolas. Mas, o que é exatamente isso que estamos chamando de bullying? Bom, sabemos bem que é no ambiente escolar   que vivemos  nossas primeiras experiências envolvendo racismo, LGBT+fobia, capacitismo, machismo, entre todas as opressões diante do patriarcado.

De modo que a palavra bullying seria facilmente substituível por qualquer uma dessas categorias mencionadas. O que temos feito para pensar prevenção ao suicídio a partir disso? E se temos feito, a partir de que metodologia isso tem sido abordado? É política pública ou apenas está presente de forma isolada em algumas escolas? Se ainda não é política pública, podemos mencionar uma efetividade? Penso que são essas algumas das perguntas que precisam estar presentes.

Pensar que o cenário que deveria promover o desenvolvimento humano e coletivo de um sujeito para serviço da sociedade em diversos aspectos convoca cada vez mais para a discussão sobre o adoecimento é uma evidência da urgência no agir. Sobretudo quando as denúncias envolvem diversas formas de violência nas relação com docentes ou com as instituições.

Importante salientar também que não apontamos  aqui uma relação de causalidade (causa e efeito) onde necessariamente pessoas que vivenciam, por exemplo, situações de violência racial, irão cometer suicídio. Nem tão pouco, queremos dizer que todas os motivadores de suicídio terão como causa fatores sociais. No entanto, creio que seja válido discutirmos se é uma mera coincidência que em pesquisa de 2018 realizada pelo Ministério da saúde e da Universidade de Brasília (UnB), constata-se que  “O risco de suicídio entre jovens negros do sexo masculino entre 10 e 29 anos é 45% maior do que entre jovens brancos da mesma faixa etária”.

O que está por trás desses números envolvendo a juventude negra? E o que falar do crescente índice de suicídio presente entre várias populações indígenas? Será que é apenas de uma campanha anual que precisa-se, ou, também, de políticas públicas que prezam pelas especificidades e defesa dos direitos que envolvem estes povos e suas terras?

O que nos fica como tarefa é pensar em como podemos construir uma campanha de prevenção ao suicídio que, como bem mencionado em nota pelo Conselho Regional de Psicologia do Paraná- CRP-PR (Acesso em 08/09/2023) , não sucumba a uma “ lógica individualizante do sofrimento, com viés moralista e/ou medicalizante, que muitas vezes responsabiliza os sujeitos por mazelas que são decorrentes de fatores estruturais, mesmo que sob a fachada do acolhimento, têm gerado intenso sofrimento a pessoas e grupos que passam ou passaram por experiências correlatas ao tema”.

Com isso, inclui-se discutir, também, os ideais de êxito e fracasso que temos naturalizado e compartilhado numa sociedade que vive o avanço do neoliberalismo não apenas como economia mas também como filosofia. Para ontem, o que precisamos é, para além de campanhas, meios contínuos e sistematizados de pensar o ser humano em sua totalidade, isso inclui construir políticas públicas com base em segurança alimentar, moradia, lazer, trabalho e educação e um cuidado, sobretudo, pautado na lógica antimanicomial.

O cuidado a partir de uma lógica antimanicomial implica em se opor a uma instituição, o manicômio, que, ao contrário de produzir cuidado, gerou históricamente o aprisionamento, morte e tortura dos sujeitos indesejáveis ao sistema capitalista. Portanto, o cuidado que defendemos aqui é através da luta pelo fomento das Redes de Atenção Psicossocial (RAPS) e a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) público, integral, gratuito, universal e de qualidade como um todo, bem como seus princípios e diretrizes.

Dessa forma, vemos que discutir saúde mental e, principalmente, através de uma ótica não individualizante, também tem a ver com o quanto nós, enquanto  movimento estudantil, conseguiremos encontrar recursos emocionais  para seguirmos a luta. É essa sobrecarga e, consequentemente, o desgaste de sua saúde mental que frequentemente gera em grande medida uma desmobilização política do corpo discente. 

Se por um lado, este se depara com a pressão do ambiente universitário, a ausência de programas de auxílio permanência, violências institucionais e estruturais, por outro, há uma dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de conciliação com a luta por demandas que dizem a seu respeito através do movimento estudantil.

Portanto, também cabe pontuarmos a necessidade de desburocratização do próprio movimento estudantil, tema este já muito bem discutido pelo companheiro Anderson Campos através do artigo Para atualizar a cultura política do movimento estudantil, que trata-se principalmente de mexer nas estruturas verticalizadas de poder presentes no interior dessas entidades, promovendo profundas mudanças e permitindo que haja uma atuação mais democrática, inclusive, daqueles que não dispõem de tanto tempo para tal.